“A Cidade não pára,
A Cidade só cresce,
O de cima sobe
E o de baixo desce…”
Chico Science e Nação Zumbi
MANGUETOWN BLUES
Por Eduardo Carli de Moraes (txt, fotos e vídeos) para A Casa de Vidro
Recife/Olinda, Outubro de 2024
Quando eu finalmente pude molhar meus pés nas tuas águas, ô Praia de Boa Viagem, um pivete com um facão já tinha enfiado um pouco de amargor e caos no caldeirão desta minha jornada e tinha deixado meu Domingão com certo sabor de bad trip.
Com certo temor, flanei por horas na praia ao crepúsculo, aqui e ali sacando rápido minha câmera fotográfica para captar algumas imagens destes monstros de concreto e vidro que tens, ô Recife, erguendo-se frente ao mar. Ia com a mente um pouco pesarosa, sentindo a carga interna do que denominei manguetown blues. Ia noiado com a possibilidade de ser alvo de dois assaltos em um só dia.
Caminhei descalço por tuas areias ao fim de tarde de um dia eleitoral (em que João Campos foi re-eleito prefeito da cidade, e de lavada, com mais de 78% dos votos válidos), sem nenhum celular para me distrair de tua impressionante paisagem antropocênica, ó Recife, quase uma Amsterdam dos trópicos, palco de tantas refregas históricas entre os holandeses e os portugas. Metrópole litorânea impressionante, onde engenhosos humanos se fizeram construtores tanto de edifícios monumentais quanto de estruturas sociais iníquas. O que já cantaram sobre o Rio, eu cantaria sobre ti: “purgatório da beleza e do caos”.
Chico Science, menino que cresceu enfiado na tua lama, caçando caranguejos e bolando seus raps ao ritmo do maracatu, me ensinou a te chamar de manguetown – e te descreveu como eu te saboreei: cheia de “rios, pontes e overdrives / impressionantes esculturas de lama”; uma mescla de maravilha e caos, mixórdia de fedores e de aromas inebriantes, repleta de becos e ladeiras, com muros cheios de cores e pixos, polvilhada de perigos que rondam o pedestre errante pelo Cais Estelita ou pelo Pátio de São Pedro.
Neste Domingão em que eu estava de partida após uma semana no teu território, após uma proveitosa Anpof e muitas peripécias culturais, eu ia refletindo sobre vidas descartáveis, violência urbana e meus privilégios de professor/filósofo de classe média. Matutava, com as ondas lambendo meus pés, naquele Sol que se punha meio escondido detrás de tantos prédios na tua orla, ô Recife de tantos encantos e contradições.
O astro-rei, no Antropoceno, perdeu parte de sua realeza: a especulação imobiliária, e o desejo das classes possidentes de morarem no luxo de um apê com varanda que dá vista ao mar, fazem da orla do Recife, vista por uma pessoa com os pés na areia, um local onde o pôr-do-sol está semi-proibido. Só alguns feixes de sol escapolem por entre a densa massa de prédios que se ergue à beira do asfalto da movimentadíssima avenida colada às areias. Em outro texto, expus meu espanto diante do Monumento aos Retirantes, na Praça Dona Lindu, que observam a avenida e o mar com expressão pétrea e estarrecida, enquanto os arranha-céus de assustadora estatuta crescem ao redor.
Em uma estreita faixa de água, a galera se banhava, não se arriscando a ir longe demais pelo perigo duplo: afogamento e tubarões. Com a peita de Chico Science que eu tinha adquirido na véspera, na feirinha da Rua Aurora, caminhei sozinho meditando sobre o que me ocorrera pela manhã, e o manguetown blues me sussurrava também ao ouvido: pelo menos, a vida você salvou, e a saúde, e o caderno cheio de suas notas sobre a Anpof e tudo mais. O sentimento dominante era também o “poderia ter sido pior.” O facão afiado do assaltante poderia ter sido enfiado em meu peito; ou poderia ter ferido estas mãos que tocam guitarra no Fritos da Terra e que escrevem uma tese de doutorado e que acarinham e que…
Recife é este poço sem fundo de contradições: os mais deslumbrados de seus turistas – talvez um pouco pressionados pelo marketing da indústria do turismo – chegam a chamá-la de “Veneza Brasileira”; atribui-se a Albert Camus, em seus Diários de Viagem, a expressão “Recife: Florença do Brasil”; historicamente, e judeus em diáspora, escapando dos católicos sangue-no-zóio que os perseguiam na Península Ibérica brandindo a diabólica Inquisição, chamavam-na de “Nova Jerusalém” (cf. Lira Neto, Arrancados da Terra).
Mas para além destes nomes de deslumbre e de referências externas, eu também a conheço cognominada de Hellcife – neologismo que compõe o nome da pólis com “Inferno” em inglês – e lembro de toda aquela discussão presente no documentário Manguebit (2021), de Jura Capela, sobre o ranking das Piores Cidades do Mundo em que Recife figurou na nada honrosa 4a posição. Foi um pouco este caos social que gerou os Caranguejos Com Cérebros, as parabólicas fincadas na lama, que estavam lá no manifesto original do manguebeat, da pena de Fred 04.
Na manhã deste Domingo de eleição, eu havia levantado disposto a flanar o dia todo pele Recife e por Olinda, antes de pegar um vôo de volta para Goiânia no fim da noite, e decidi ir para a região do Forte das 5 Pontas e dos Cais José Estelita. Fui enganado pelo Google, que me apontou que o Museu estaria aberto (dei com a cara na porta), e fiquei por ali, vendo e fotografando o Monumento ao Maracatu, as ruínas da Estação Ferroviária, aquela estranha mistura de ruínas e rio corrente nisto que é um território-em-disputa no Recife.
Fui abordado por trás, puxado pelo ombro para que me virasse, e subitamente apresentado a um facão com lâmina tão gigante que depois me evocou o Lunga de Bacurau e o instrumento de decapitação de imperialista invasor que o gayrrilheiro utiliza no filme-marco do cinema brazuca. Seguiu-se a ameaça gritada com o máximo possível de ferocidade por aquele menino que – depois pensei com meus botões – tinha idade para ser meu estudante de filosofia numa turma de primeiro ano colegial no IF.
Mandou que eu entregasse o celular se eu não quisesse tomar uma facada – e eu dei. Mandou que eu entregasse a sacola que eu carregava (vermelha, comprada em Amsterdam num protesto, trazia uma ilustração em solidariedade ao povo palestino onde estava escrito “We’re All Palestinians”) – e entreguei.
Mandou que eu desse a carteira – e aí tive o único gesto de resistência não-violenta, extraí o pequeno maço de notas e entreguei a ele o dinheiro, mas disse que precisava de meus documentos e meti de volta no bolso a carteira com seus cartões e a CNH, RG, CPF etc. Dando-se por satisfeito, o pivete escafedeu-se feito um raio com os bens pilhados.
O desafio emocional e cognitivo, sempre que vivencio uma situação de violência urbana em que alguém vem tomar a força algum de meus bens, é duplo: por um lado, o desafio de manter certo sangue-frio, apesar do coração estar pulando endoidecido no peito, tendo saltado de uns 80bpm (pré-assalto) para uns 200bom (durante o assalto), pois qualquer movimento mais brusco pode resultar num ataque do assaltante; por outro lado, o desafio de pensar numa espécie de hierarquia ontológica, nome que difícil que arranjei para me referir à escala daquilo que mais importa na vida – esta estando no topo, pois é o fundamento necessário para todos os outros bens; ou seja, dinheiro, celular, fone-de-ouvido, carteira, estes bens perdidos, por mais transtorno que isto gere, não são nada de insubstituível. Já uma vida perdida não é passível de recuperação.
Também é curioso pensar que existe uma certa margem de diálogo, até mesmo de diplomacia, no tenso momento do assalto. Quando relatei as ocorrências aos companheiros de banda dos Fritos da Terra, este elemento se manifestou: há uma negociação de alta tensão que ocorre nesta situação, no caso uma tentativa, de minha parte, de não ficar totalmente “pelado”. Apesar de não ter “reagido” propriamente à violência – reação, no caso, designando uma tentativa de contra-agressão -, tentei ser diplomático para manter pelo menos a carteira comigo, pois sem ela possivelmente perderia meu vôo de volta pra casa e teria altos transtornos para gerar novos documentos, para além de vários procedimentos para proteger contas bancárias.
Banditismo por necessidade ou banditismo por pura maldade? A opção posta pela canção de Chico Science também me ocorre agora, pensando nas motivações do pivete para empunhar um facão como se fosse uma espada e partir pra me despossuir de meus bens. Ele veio sem camisa, com pouca roupa, e não é implausível que com o estômago roncando. Após o roubo, utilizou meu celular, que estava destrava e com o Uber aberto, para fazer um pedido de R$500 na Uber Eats – que não foi aceita pelo banco.
Assaltar é também uma forma de se insurgir contra a fome, a despossessão. Quando você é tratado pela sociedade como vida descartável, quando o poder público não te trata com o mínimo de cuidado e assistência, quando a escola não te acolhe, quando a polícia é a única faceta do Estado que você conhece e esta te escorraça, te baculeja e te maltrata, o que seria de se esperar? Quem tem a própria vida tratada como escória pode facilmente chegar a uma perigosa extrapolação: todas as vidas são escória; estes turistas que vem para cá, e quem tem mais do que eu, zanzando pelo “meu” território, vão rodar mesmo. Aquelas vidas que a sociedade descarta, trata como menos que humanas, se insurgem tratando as vidas como se descartáveis fossem.
Despossuído de boa parte de meus bens, mas aliviado por estar vivo, zanzei até achar um táxi que me levasse de volta ao quartinho de airbnb onde eu estava hospedado perto da praia de Boa Viagem; o taxista me garantiu que o roubo a facão tem acontecido muito, assim como os “arrastões” em meio às aglomerações de carnaval. Ir dançar um frevo no meio da massa pode ser perigoso pacas. O taxista narrou ainda uma estória tenebrosa que ainda me assombra, digna de um conto de true crime: um turista foi pra balada na madruga e, na saída, foi assaltado por um desses pivetes-Lunga. O turista achou que podia reagir e ser mais forte do que seu assaltante; mas este enfiou o facão no peito do turista tão forte que o cabo até quebrou. O turista assaltado agonizou no asfalto e não pôde ter sua vida salva. Isto também é o Hellcife.
Desde pivete, quando comecei a ser assaltado (e num parei mais), percebi-me morando num dos países mais violentos do mundo e venho tentando lidar com os traumas impostos pela violência urbana. O primeiro assalto teve repercussões amplas na minha vida, visão-de-mundo, “estrutura afetiva” e até mesmo exercício do que se chama “espiritualidade”. Eu era um pivetinho magricela de uns 12 anos de idade, voltando da igreja católica que frequentava em Rudge Ramos – São Bernardo do Campo, onde havia sido enfiado para fazer um tal de catecismo, e um outro moleque tinha me abordado na rua com braveza, dizendo que com aquele estilete que tinha no bolso já tinha “furado e matado” dois caras, e que era facinho furar e matar mais um; que eu aceitasse ir para ele pr’um beco, que passasse para ele o relógio, todo o dinheiro na carteira e moedas no bolso, todas as revistinhas de super-herói que havia comprado na banca do Mercado Municipal, caso contrário eu ia ser agonizar sangrando numa sarjeta.
Como vocês já devem ter suspeitado, Deus não se manifestou nesta ocasião para me salvar de meu apuro. Nenhuma intervenção divina com uma hoste de criaturas angélicas veio chutar a bunda de meu assaltante e proteger a nobre alma que tava lá, ainda que relutantemente e respondendo mais a pressões familiares que a qualquer inclinação de sua vontade, para a primeira comunhão. Fui rapado de quase tudo o que eu tinha comigo, nesta ocasião, inclusive de minha fé. Esta entrou em uma crise da qual nunca se recuperou e devo ao episódio – vivência visceral – minha inerradicável tendência ao ateísmo. Tempos depois, minha primeira comunhão foi também a última. Nunca mais botei uma hóstia na língua nem perdi meu tempo em orações ao céu vazio. Deus havia manifestado sua inexistência ao não intervir em meu favor quando eu estava sendo alvo de uma injustiça.
Hoje percebo o que pode haver de falacioso em meu raciocínio teocida de pré-adolescente, e sei que muitos teólogos, com diploma ou de boteco, fariam suas estripulias para provar que isto tudo não prova que um Deus bom, onipotente e onipresente não existe, que ele “escreve certo por linhas tortas” e o escambau. Não tenho muita paciência com os apóstolos do sagrado e me sinto fincado num mundo profano.
Na foto que abre este post, trago uma fotografia que tirei ao passear pela Rua da Aurora: as águas do Rio Capibaribe, com aqueles belos galhos de árvore arqueando por cima, estão em estado de total imundície. O lixo humano ali amontoado – latinhas de cerveja e refrigerantes, bitucas de cigarros cancerígenos, pacotes descartados de Baconzitos, camisinhas descartadas após uso, tudo se une num lamentável amontoado de poluições. Isto também é o Recife, obsceno e fora do cartão postal, e cenas assim somam átomos ao meu pesar, ao manguetown blues.
Desta vivência agridoce recente, no Recife, carrego comigo algumas reflexões que vieram amadurecendo sobre quais as posturas mais dignas diante de um quadro social tão tétrico quanto este que o Brasil nos oferece com suas mais de 50.000 mortes violentas e precoces ao ano:
1) estou plenamente convicto que a solução equivocada é aquela do indivíduo que se tranca detrás de cadeados, carro blindado, condomínio fechado polciiado por segurança privada, num cotidiano de oni-vigilância com câmeras e outros dispositivos securitários; isto não é solução nenhuma, mas apenas uma auto-prisão num bunker de privilégio, e recuso esta via; não vou apodrecer numa jaula de ouro por medo de encarar o que nossa sociedade injusta e desigual produz ao varrer para a miséria e o desabrigo milhões de nossos concidadão;
2) também estou plenamente convicto que o processo de solucionamento – longo, difícil, custoso – da violência urbana só se fará com justiça social, ou seja, distribuição de renda, ou seja, com medidas como a taxação das grandes fortunas e o investimento em políticas públicas de educação, cultura e lazer; tampouco é solução alguma a gente tratar a delinquência juvenil demandando polícia truculenta, co Caveirões tenebrosos, e construindo complexos carcerários e enfiando a molecada em FEBEMs e que tais;
3) a cada assalto, tenho lançada à cara a verdade de que a vida, a minha e a de todos, é frágil, destrutível, pode estar aqui agora mas nada garante que esteja aqui logo mais; um assalto a mão armada é a revelação, num relâmpago, de que a vida é destrutível, que a saúde pode ser subitamente perdida, e um certo desesperado carpe diem nasce disso, mas sem a alienação liberal-hedonista tão típica do avassalador consumismo que temos; aproveitar o dia é usar cada batida do coração e cada alento da respiração para lutar por um mundo menos desigual, e assim encerro esta crônica autobiográfica relembrando de uma frase que ostentei por aí em minha camiseta do Deus e O Diabo Na Terra do Sol, o clássico de Glauber Rocha:
Assim, mal dividido, esse mundo anda errado.
Que a terra é do homem, não é de deus nem do diabo.
Eduardo Carli de Moraes, 15/10/2024
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Publicado em: 15/10/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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